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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Os dois Stevens – Parte 2

Até mesmo Spielberg envelheceu. Ou melhor, cresceu e amadureceu. Ao longo dos anos 90, Steven saiu um pouco do seu reino de fantasia para nos dar um pouco mais de realidade e frieza. Os nazistas caricatos que frustramente nunca conseguiram derrotar Henry Jones Jr, agora são bastante reais, executando fria e calculadamente os judeus do gueto de Varsóvia aos olhos de um Schindler que de pura ignorância e aceitação ao regime de Hitler, torna-se um homem novo, decidido a salvar quantas vidas puder. Steven filmou quase tudo em preto e branco, usando suas tomadas panorâmicas de praxe, mas também aproximando perigosamente os closes dos olhos do espectador, como se nos forçasse a entrar na mente do alemão e sentirmos um pouco de sua inexplicável, mas tangível, transformação de atitudes e caráter. Não foi Oskar Schindler um grande herói, mas ele mostrou o que um homem determinado e com recursos pode fazer. A cena mais tocante, um dos momentos Spielberg, é no saque e massacre do gueto, quando apenas Schindler parece notar a pobre garota de traje vermelho vivo, daqueles que irritam a retina, um insulto visual, como se fosse a parca e despercebida moral, inocência e esperança que pareciam não ter espaço naquele mundo de trevas.

Mas, mesmo sendo agora um realista, ele se permitiu um sonho. Steven sempre gostou da Segunda Guerra Mundial e de sua mente e genialidade, aliadas ao bom amigo Tom Hanks, mostrou o que poderia ser a melhor representação do Dia D jamais feita, usando todas as referências que tinha à mão, de literatura, testemunhos e outras produções, fazendo deste filme referência aos seus predecessores, numa inversão raras vezes vista. Os nazistas ainda estão lá, claro, e matam os mocinhos, um fogo cruzado que vai tornando a vida de Hanks cada vez pior, tudo para resgatar um tal de Ryan, que no final tem a missão de ser o melhor homem que pode ser, viver uma vida digna, em honra dos bons homens que deram sua vida para salvá-lo quando nem a invasão da Normandia tinha se consolidado. Mas ainda naquele inferno que foi a invasão, há sempre os momentos Spielberg, ficando o conselho para nunca tirar seu capacete e esperar um pouco para ver se foi mesmo Hanks que com umas balas destruiu um tanque de guerra alemão.

Retornando um pouco ao seu velho mundo que o consagrou, ele explora a boa vontade e carisma de Hanks, que vai viver num aeroporto, num terminal na verdade, numa história que Saramago muito bem poderia ter escrito. O homem que está numa situação absurda, embora não impossível, que aprende primeiro a sobreviver, depois a se comunicar, depois a usar seus dons para melhorar sua nova casa, o terminal, e desta forma conquista a admiração de todos, até mesmo do seu rival, muda suas vidas para melhor, faz a diferença num lar que não é o seu, mas que ele o fez ser. A complexidade é crescente ao mesmo tempo que tudo se descomplica, já o texto bem escrito do roteiro foi muito melhorado tanto pela atuação quanto pela direção, enchendo-nos de lições de vida que serão vistas, re-vistas e descobertas a cada vez que o filme é assistido.

Ainda assim, Steven permanece na sua nova fase de realidade com pouca ou nenhuma fantasia. Quando está na companhia de extraterrestres outra vez, primeiro numa série depois um filme para cinema, eles não são simpáticos como ET, mas são mais misteriosos. Mas como um fruto não cai longe do pé, Taken poderia ser a revisão mais longa, árida e dramática da história dos seres superiores que de repente se interessaram por nós. Muito diferente da refilmagem do clássico A Guerra dos Mundos, com os extraterrestres mais calculistas e assassinos da história do cinema, no qual Steven trabalha com muitos planos de detalhes e quando nos mostra uma visão panorâmica, medo é a palavra que ele quer passar.

Em A.I., na boa companhia do saudoso Kubrick, Steven conta a história do Pinóquio outra vez, mas poupa muito do açúcar do conto infantil, ainda que exista a eterna polêmica do quanto das idéias do falecido Stanley Kubrick ele seguiu, modificou ou amenizou. Ainda assim, há quem se cative com o pequeno andróide e os personagens que ele encontra pelo caminho. No fim, são nossas crias que herdaram o mundo que destruímos, contrastando com a visão futurista otimista dos anos oitenta que deu origem a uma das mais amadas trilogias do cinema.

O fato é que tanto um como o outro Steven, mesma pessoa, mesmo Spielberg, algumas vezes se desencontraram, resultando em obras questionáveis, outras vezes fizeram brilhante combinação. Spielberg dá tudo de si nas suas histórias e séries, como produtor e diretor. Na sua ímpar filmografia, ele criou heróis modernos, retratou com dignidade a indignidade humana, e se tornou um nome que é sinônimo de competência.

Do jovem e audacioso ao maduro e cauteloso, que agora faz filmes após um ou dois anos de ausência, sem aquele fervor criativo de vinte ou trinta anos atrás, Spielberg vem como um criador de uma ponte entre a realidade e a fantasia e com genialidade nos convida sempre a ir de um lado a outro, numa travessia sempre prazerosa, provendo o cinema moderno de uma mitologia, com todos os personagens que gostaríamos de ser e de enfrentar numa grande aventura.

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