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sábado, 14 de maio de 2011

A Amnésia Distorcida do Peão de Xadrez


Não sou nem quero ser psiquiatra. Claro que os respeito como profissionais e pessoas, mas não é um campo que me traga muito interesse, porém como contraditório que sou em alguns pontos, várias vezes me vejo criando teorias do campo da mente para explicar o comportamento daqueles que me cercam.

Recentemente cheguei à conclusão de que no vasto campo do conhecimento humano, o campo da área de saúde sofre de um peculiar distúrbio de memória. Trata-se, analogicamente, do que um peão de xadrez diria.

O peão, como espero que saibam, é aquela peça pequena que fica à frente das demais, anda apenas uma casa por jogada, toma as demais de lado com progressão para a casa da peça capturada, é promovida a outra peça automaticamente ao chegar na primeira casa do tabuleiro adversário e, mais característico, não anda para trás. E, se pudesse falar, usando como base de seu raciocínio suas habilidades natas, diria:
-Sempre fui fundamental ao jogo, dominava o centro do tabuleiro, defendia as outras peças, não tinha um ataque em que eu não fizesse parte. Os outros deixavam tudo comigo, para decidir o mais importante do jogo, se era atacar o rei e arriscar o mate em 22 lances, que por sinal só eu sabia, ou se era me arriscar num plano intricado para capturar a rainha e detonar toda a defesa em 21 lances e ter um mate nos dois lances seguintes.

E, já promovido a outra peça, uma rainha, por exemplo, se viraria para os demais peões, pobres coitados que estavam lá atrás:

-No meu tempo de peão, vocês não seriam peões. Eu nunca errei como peão e quando errava era pq a luz da sala atrapalhava meu jogador, mas eu não tenho nada com isso. Vocês nunca entrariam numa competição do nível que eu participava, não aguentariam um torneio de praça com velhos gagás todos em estágio terminal de Alzheimer.

Isso, claro, diria ao ver, do longo de sua experiência, um erro que seria grosseiro, mas compreensível dada a inexperiência dos demais. O grande problema é que, estando num estágio posterior, esqueceu que um dia foi um peão, e se foi, era o melhor de todos. Caía o rei e eu não caía, seria seu lema.

Pior, não seria apenas quando no formato de outra peça que diria isso. Bastava estar uma casa À frente de seus demais companheiros, o discurso seria o mesmo, sendo aquele que está na segunda casa, ou seja, antes de dar seu primeiro movimento, que sofreria com a amnésia distorcida de todos os que estão mais adiante. Infelizmente este é o clima que vejo se repetir várias e várias vezes na medicina.

Incrível como o chefe foi o melhor dos médicos e o melhor dos residentes. Incrível como o r3 foi o melhor r2, o r2 o melhor r1, o r1 o melhor dos internos, o interno o melhor dos acadêmicos. O acadêmico, o melhor vestibulando.

Basta alcançar o próximo nível, ou casa, que seus erros são apagados automaticamente do parco registro da história da humanidade. Suas habilidades, por outro lado, são aumentadas e ninguém parece se importar que, em relação há 30 anos atrás, temos muito mais recursos e mais diagnósticos a dar. Sou da opinião de que só se pode realmente criticar alguém se houver uma base comparável para o argumento.

Vejam bem o que quero dizer com isso: não posso dizer que os pesquisadores de hoje são piores do que Alexander Fleming por que não conseguem fazer antibióticos tão revolucionários quanto a penicilina. Não tiro o mérito de ninguém, mas hoje em dia vc passa anos e anos tentando entender um mecanismo ainda não testado e outros tantos para tentar fazer um teste com um rato e depois ir para seres humanos. Não é só uma questão de rigor ético maior, mas simplesmente a ciência avançou de uma maneira tal que o próximo passo fica sempre mais difícil e complexo.

Agora, se chega um colega meu que terminou a mesma residência que eu há, digamos 4 anos, no mesmo hospital e me disser: Olhe, não reclame que a tomografia demorou 3 dias para ser marcado, no meu tempo, eu tinha que esperar 10 dias. Excelente, com uma dessas eu pararia de reclamar e tentaria melhorar ainda mais o que temos. O tempo entre mim e meu colega é tão pouco que não houve grandes revoluções ou uma melhora tão expressiva, portanto ele tem uma base de comparação para me dizer que eu estou sim errado.

Para aqueles que há 30 anos eram estudantes de medicina ou residentes, tomografia era coisa altamente difícil se não impossível de conseguir, não se tinha metade dos antibióticos de hoje, muito menos o nível de complexidade que cada diagnóstico traz. Como daqui a 30 anos, minha medicina será jurássica, verdade. Entretanto, vale uma tentativa para ao invés de nos gabarmos somente das partes boas e fazer das ruins adversários que, pelo discurso, nós fazemos serem risíveis, tentarmos fazer disso um ensinamento de valorização para os mais novos e não um desestímulo. Digo desestímulo com tranquilidade, pois uma pessoa que simplesmente diz que era o melhor do seu tempo e não oferece uma alternativa para os demais serem os do seus, está enganado quando pensa que ajuda.

O peão de xadrez é peça fundamental e importante, mas esquece que um outro peão o defendia, assim como tinha por perto um cavalo ou bispo que o defenderia em um lance se fosse ameaçado. E outra, peões caem aos milhares, enquanto rainhas e torres são poupadas e usadas com um cálculo monstruoso.

Gostaria de saber o que seriam dos chefes sem seus sub-chefes, seus residentes, seus internos. Se os mais graduados sempre foram os melhores, imbatíveis, invencíveis, perfeitos, como ficariam um só dia sem a base da pirâmide? O que o peão de xadrez não pode ver, até por que não tem o hábito de olhar para trás com bons olhos, é que ele só está a frente pelo simples motivo de que há todo um exército com suas qualidades e limitações lhe apoiando e esquece que o objetivo é manter o rei a salvo, ou o paciente, e no fim do jogo, ele pode até dar a vitória, mas chegará alguém que dirá com toda a propriedade de um bom analisador:

-É, o peão promovido a rainha venceu o jogo, tudo bem, mas queria ver se aquele bispo que estava apoiando ele tivesse ido embora, se seria assim. Sozinho, seria apenas mais uma peça a ser perdida

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